quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

A Arte de Viver A Vida


   Ontem, voltando tarde do trabalho depois de outro dia estressante, observei, quase sem querer, um casal dançando agarradinho em pleno calçadão da praia de Ipanema. O rapaz usava uniforme alaranjado de gari, mas com muita dignidade, e trazia um gingado de quem sabia dançar; já a moça, uma mulata de 20 e poucos anos, e sempre atenta aos passos dele, não se mostrava afetada pelos olhares curiosos... e os dois se deixavam levar pela dança, felizes, como se estivessem bailando em pleno ar!
   Mas dançavam o quê, se não havia musica? Eles voltavam do trabalho assim como eu; já deveriam estar em casa, entretanto estavam ali, no calçadão, dançando aquela música imaginária. E na cabeça de todos, uma certeza: aquele casal se amava de verdade, e buscavam expressar esse amor através da linguagem universal da dança.
   Foi então que, naquele momento, me ocorreu pela primeira vez o quanto me ajustara a um estilo de vida sufocante, que sempre me privou de curtir a vida com alegria e simplicidade. E percebi que não é uma simples questão de termos ou não tempo para as coisas: nós é que não sabemos aproveitá-lo ou dividi-lo direito nessa soma de compromissos, agendas e atividades, em que se transformou a nossa própria vida, e com isso não conseguimos impor limites às tentações dos excessos.
   Sim, aquele casal, alheio ao corre-corre e ao tumulto do bairro, me deu ontem, sem querer, esta grande lição de vida, que me fez sentir um misto de gratidão e alegria. Mas  era principalmente a alegria de saber que em cada cantinho deste mundo, há sempre pessoas simples e humildes que estão a nos ensinar, e sem a menor pretensão, a arte de viver a vida.



quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Linha Vermelha, Rio


Engenharia
engenharia faraônica em linha vermelha.
A linha corta a paisagem de concreto; de repente nos suspende e entra
em nossos olhos urbanos
já adaptados a tanto arrojo de infra-estrutura.

Repara como a linha é prestativa!, tranqüilizando vidas com pressa
de chegar,
desafogando vias inteiras que agora respiram mais aliviadas (?) à hora
implacável do rush, inaugurando um novo tempo.

Veículos desembocam na linha; multiplicam-se. De resto, já são milhares,
desdenhando as estrelas e as formigas.
A cidade afinal encurtamos, hoje ao nosso alcance, e
comunidades esquecidas pelos anos se anunciam, num
passe de mágica.
Bairros surgem e ressurgem, favelas,
prédios e casas brotam do nada, regiões saltam do mapa, tudo
com uma rapidez incrível que nos deixa mais próximos e seguros, tão
seguros que esquecemos a velocidade
nas rodas assassinas de nosso carro.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

A Favela e a Corrupção Policial

       A policia carioca fez outra incursão numa grande favela da cidade. O chefão da área desta vez não impôs resistência, e se escafedeu -  pernas pra que te quero! - deixando os comparsas abandonados à própria sorte. Armas e drogas apreendidas, além da descoberta de meia tonelada de produtos contrabandeados do Paraguai, assinalaram o êxito daquela operação.  
       Mas como nesta vida nem tudo é perfeito, e em toda a regra há exceção, a exceção ali também se fez presente sob a figura suspeita de um policial militar. Um brutamontes de meter medo. E dito e feito.
   - Mãos ao alto!... Aqui é a policia... Identifique-se.
   - Pois não, doutor... eu... eu sou morador...  estou apenas descendo pra trabalhar.
   - Qual é o teu nome? Vamos, diga!
   -  Augusto César, mais conhecido como o “imperador do pedaço”.
   - Como? Augusto o quê?
   - Augusto César, doutor... e a seu inteiro dispor... - repetiu o morador, um mulato de boa pinta, abrindo um sorrisinho de piranha.
   - Deixe de besteira, malandro,  e me passe a identidade!
       E como temesse o pior, o mulato abriu a carteira que trazia na mão e sacou o documento de identidade, mas o fez com tanta desatenção que quase deixou cair as duas únicas notas de vinte reais.
   - Aqui está.
   - Vamos ver!... Ok! O nome confere,  pode guardar.                                                
   - Agora posso ir?
   - Calma aí, neguinho!.... Só te libero se você me der um “mônei”.
   -  Não entendi.
   -  Não se faça de bobo:  eu quero dinheiro, MÔ-NEI, e sei que você tem...            
   -  Tá bom, chefia, eu confesso que tenho...Mas são só vinte reais.
   -  Passe pra cá!...
     Reagir?  Numa situação dessas, quem pensaria em reagir? Pior: quem lá na cidade acreditaria na  versão barata de um pobre morador de favela? Porém o morador armou-se de coragem e reagiu. Não botou a boca no mundo, é verdade, mas com um olhar súplice experimentou apelar para o coração filial do brutamontes. E não é que deu certo?
   - Por favor,  não faz isso comigo não! O senhor com certeza tem mãe ou já teve um dia, e sabe como é duro não atender a um pedido de uma mãe sofredora. Com esse dinheiro eu ia comprar um arranjo de flores pra enfeitar o caixão de meu pai, que morreu ontem. Entendeu o meu drama, chefia? Se o senhor tem coração, aposto que  vai entender...
   Por mais que a gente duvide às vezes da generosidade alheia, o policial provou deveras que tinha coração, solidarizando-se:
   - Quantos anos tinha o teu pai?
   - 80 anos.
   - E de que ele morreu, posso saber?
   - Sei lá, doutor. Ele estava sentado na varada de casa, e  de repente deu um troço nele, e pá! caiu mortinho no chão!
   -  Ah... Meus pêsames!... Mas me diz uma coisa: quanto acha que custa um arranjo de flores?
   - Uns vinte reais, por aí...
   Nisso o policial coçou de leva a cabeça; e afundando  a mão no bolso da farda, retirou de lá as duas notas de vinte.
   - Toma aqui esse dinheiro... isso deve servir... Mas é emprestado, ouviu?
   - Ahn...
   - E por favor, não conte nada a ninguém!... Bico fechado, amigo. É que eu não gosto muito de publicidade, contar vantagens, essas coisas...
   - Ok! Entendi. Obrigado... tchau!...
   - Tchau... Mas amanhã eu volto pra acertamos as contas!